sexta-feira, 15 de abril de 2011

Um texto que eu queria ter escrito...

Seu Jair, Bernardo e o amor incondicional
por Lúcio de Castro – Jornalista da ESPN – Brasil
13/04/2011


 "Dois passos para o lado deixando a Rio Branco e estamos no Largo da Carioca. Nunca consegui cruzar a Carioca sem esquecer da vida, abandonar os afazeres e ficar admirando aqueles tipos. A primeira parada sempre foi um pedido de música para Ademir Leão. De seu sax ouvia alguma bossa nova, “As time goes by”, Cartola e seguia. Parava na roda do Alexandre, que enrolava durante horas seu público, prometendo que dentro em pouco iria dar três saltos mortais e entrar na garrafa. Sua retórica era tão espetacular que uma multidão ficava horas hipnotizada e talvez até acreditasse que não era possível ir embora, sob o risco de perder a façanha. Já nem me lembro se cheguei a acreditar ou não. Por fim, parava na minha atração predileta: Jair Maravilha, que durante horas conversava com a massa enquanto fazia embaixadinha de todos os jeitos. Sujeito dos mais espirituosos que conheci, vi poucos com tamanha capacidade de entreter a multidão. 
Seguindo pelas ruas da cidade vou parando para me divertir com o que o de melhor uma cidade pode oferecer: seus tipos, suas figuras. Algo tão vivo por aqui em São Sebastião do Rio de Janeiro... Deve ser o que João do Rio chamou de “a alma encantadora das ruas”. Suas crônicas são puro deleite para quem quiser saber sobre tipos da rua. Gosto de ir flanando por aí e encontrando tais tipos. Um pulo em Vila Isabel para resenhar com Evandro Bocão, sempre de bermuda e sandália, uma meia-trava no Flamengo para ouvir as mentiras do Juca, as saudades das memórias do Francês em Ipanema e o dia já se foi. Tantos personagens mais que já me deram a ideia de catalogar todos eles e escrever um livro. Não fosse a vontade maior ainda de seguir vendo eles ao vivo do que na tela do computador, levaria isso adiante...
Mas talvez nenhum personagem me fascine mais do que o casal de moradores de rua que fica perto da minha casa. Devem estar lá pelos 40 anos, maltratados pelo desabrigo das ruas e pela bebida. Provavelmente jamais saberão que sempre fico olhando com absoluto encanto para os dois. Sempre com o mesmo pensamento: pode haver amor maior do que o daqueles dois, sempre namorando, sempre parecendo apaixonados? Ali não existe pensamento no cartão de crédito do parceiro, no apartamento, no dote ou em qualquer garantia. Entendi meu fascínio diante do casal quando parei para meditar o que tanto me encantava nos dois. Fácil de entender: não pode haver nada mais espetacular do que o amor incondicional. Amar alguém ou algo sem qualquer condição, sem qualquer razão. Amor de pai e filho, amor de filho e pai, amor de mãe e também provavelmente a grande razão para sermos tão apaixonados por futebol: amor pela bandeira que torcemos. Muitas vezes o amor que nos liga aos pais. Acima de tudo, um amor incondicional.
Lembrei-me disso tudo na tarde de sábado. Estava em Macaé, cobrindo o jogo que poderia definir o rebaixamento do América. Quando meu caminho cruza com um desses personagens maiores, espetaculares. Marceneiro, morador de uma favela na Baixada Fluminense, 69 anos. Seu Jair Rangel, torcedor do América, solitário cavaleiro envergando incondicionalmente a bandeira e as cores que o pai ensinou a amar. 
Seu Jair da epopéia para chegar a Macaé, baldeando desde às cinco da matina em mais de cinco ônibus. Não estamos falando do Barcelona nem do Real Madri. Estamos falando do América prestes a ser rebaixado. Quem há de explicar esse tal de amor incondicional, essa coisa que sai da alma e passa pelo coração, e faz seu Jair sentir a presença do pai que já se foi há mais de 20 anos, reencontrado na arquibancada nos dias de jogo do América.
Teve ainda o Bernardo, menino de 18 anos, estudante de engenharia na PUC. Outra realidade tão distinta do marceneiro da Baixada, mas unidos e juntos naquela arquibancada. Poderia estar nos embalos de sábado à noite como tantos de sua idade e condição, mas estava ali, naquele amor incondicional, passado também pelo pai. Sem saber como voltaria para o Rio, rebaixado, mas certamente de alma lavada por manter a chama acesa.
Costumo dizer que estranhamente, depois dos anos conhecendo alguma coisa dos bastidores do futebol, estranhamente ainda sigo gostando disso tudo. Talvez pela mesma chama e razão que movem seu Jair, Bernardo. O amor incondicional, aquele que os pais nos passam como parte de nossa identidade. Vai entender? Só sei que no sábado mais uma vez vi reafirmada a certeza de que isso tudo segue aceso demais, apesar dos Teixeiras e cia, apesar dos pesares. Faz escuro mais eu canto, como disse o poeta. O canto do seu Jair, do Bernardo, o dos nossos..."

Texto maravilhoso! Esse fim de semana estréia na ESPN-Brasil um especial que o jornalista Lúcio de Castro fez no Haiti - ESPECIAL: HAITI, O PAÍS DOS REST AVEC vale a pena conferir.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Bonito, muito bonito mesmo.
    O documentário feito pelo Lúcio de Castro vai passar hoje as 23:00 e já está reservado.
    Gosto muito dos comentários, dos textos, enfim, da visão de mundo desse cara.

    Abraço mestre Pirajá.

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  3. Dá uma lida nesse texto Juba:
    http://edsongil.wordpress.com/2009/07/06/otimismo-para-retardados/

    Depois a gente conversa.

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  4. amor incondicional!!! amor de mãe, com certeza, entre homem e mulher?... se cheguei a ver deve ter sido tão bonito e sureal, que nem me dei conta que estava vendo e minha mente , de tão desacostumada a ver tal beleza, não conseguiu guardar. mas se realmente existe, e eu acredito que sim, deve ser ão lindo quanto raro. jairo

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  5. boa noite prof. passei para visitar seu blog, que por sinal é muito fera, fui seu aluno na cambury, na disc etica em TI, pq saiu da facul? como anda as coisa.? esses dias estava lembrando das nossas conversas em sala sobre os temas propostos.... ai deu saudades.!

    Att André Luiz

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